sexta-feira, maio 28, 2004

Kaufman, 1

Todos os argumentistas colocam um pouco de si nos filmes. Charlie Kaufman coloca-se totalmente.

Numa conversa de café, em local e data esquecidos, alguém que também esqueci disse um dia: - É brilhante, cheguei à conclusão que Donald não existe, Charlie e Donald são a mesma pessoa.

De facto em Adaptation, Charlie e Donald são a mesma pessoa, mas não ficamos por aqui. Charlie é Craig em Being John Malkovich, Charlie é Chuck em Confessions of a Dangerous Mind, e em Eternal Sunshine of the Spotless Mind Charlie é Clementine e Joel, não deixando de ser curiosas as iniciais de Clementine Kruczynski. Kaufman espreme-se a si próprio e o sumo que dele extrai assume a forma das suas personagens, sempre perdidas, sempre desajustadas, mas sempre na procura do mesmo objectivo: o amor de alguém. Esta é a razão pela qual a fórmula de Kaufman não se esgota. Leio críticas e análises aos guiões de Charlie que apontam como sucesso a sua forma de baralhar as cartas colocando o espectador no centro de um labirinto de onde não sabe sair. Não. Kaufman não faz isso. Houvesse um labirinto e todas as suas paredes seriam de vidro quebrável, e onde é possível de qualquer ponto observar o nosso objectivo, a saída que é muitas vezes uma nova entrada para o eu. Podemos contornar os caminhos para lá chegar, ou simplesmente partir o vidro. Há em tudo, uma certa dose de risco.

A procura do amor é sempre um labirinto de vidro. Logo, quando Kaufman se coloca nos filmes, quando coloca a sua jornada, acaba por transportar-nos para um local que nos é familiar, já conhecido, e que também se encontra baralhado e disperso nas nossas memorias mais remotas. Os filmes de Kaufman são um puzzle, que é também o nosso próprio puzzle. Enquanto desvendamos as suas estórias, na sala escura de um cinema, alinhamos também as peças do nosso jogo. Kaufman sabe isto, porque é igual a todos nós, porque de alguma forma todos somos idênticos. A diferença está naqueles que o admitem, como Charlie.

Deixamos a sala satisfeitos porque descobrimos algo já esquecido. Confusos, é certo, mas reencontrarmo-nos connosco nunca é um processo dócil. Deixamos a sala com essa mensagem na mente: que as memorias não devem nunca ser apagadas.

Já dizia Donnie em Magnolia: Podemos cortar com o passado, mas o passado não corta connosco