quinta-feira, junho 24, 2004

Coito interrompido

Existe sempre uma primeira vez para tudo. Ora aqui está uma frase feita, tornada já um chavão, e digna de pertencer a uma antiga lista de expressões a abandonar. Contudo, a frase é correcta e verifica-se diariamente. Por exemplo, existe sempre uma primeira vez para escrever sobre Kevin Smith num blogue de cinema. Existe também sempre uma primeira vez para ir escrever sobre Kevin Smith e não o fazer, não porque não se quer mas porque não se pode. Parece complicado, certo? Eu vou explicar. Mas primeiro, deixei-me falar um pouco sobre argumento. Para quem nunca leu nada sobre este assunto, este texto é a prova que há realmente uma primeira vez.

A maior parte dos filmes são divididos em três actos, desde o tempo dos gregos. De notar que, como tempo dos gregos entendo um passado muito distante e não apenas alguns meses atrás, desde a estreia de Troy. Troy também tem os seus três actos, mas foi escrito por David Benioff, e o artigo é, ou era, sobre Kevin Smith, logo é necessário acabar com a dissertação. O que escreveu este senhor? Por exemplo, Jersey Girl que pode ser encontrado actualmente em qualquer sala de cinema. Também escreveu Clerks, mas isso fica para quando me for possível escrever o que queria. Lembram-se? Umas linhas atrás escrevi que não podia falar sobre o assunto. Ia então falar sobre os três actos, certo? Então vamos a isso, com uma ajuda de algumas palavras em língua inglesa:
Act 1 – Setup: onde se apresenta a personagem principal se estabelecem as bases para a estória que vamos contar. O “onde”, o “quem” e o “quê”, ficam despachados nesta fase do filme.
Act 2 – Confrontation: já repararam que cada vez que o nosso herói atravessa um obstáculo encontra outro mais difícil na sua frente? É o que dói mais a um escritor, e o que mais cativa a audiência. O acto 2, quando bem construído, prende-vos nas cadeiras da sala escura.
Act 3 – Resolution: a esta fase do guião gosto de chamar momento SuperColaTrês. O que se passa por esta altura, e até ao final do filme, fica agarrada ao espectador mesmo quando ele sai da sala. Nostalgia, tristeza, vontade de mudar a vida, cola-se a nós e já não larga. Quando este acto acaba, está na altura de pagar o cartão do parque de estacionamento.
Ora, entre estes três actos existem dois plot points principais. São eles que fazem a estória virar numa direcção diferente, aliás, são eles que fazem tanto a estória como história. O primeiro ocorre em média aos 20 minutos de filme, o segundo por volta dos 90 minutos.

Vamos então pegar num filme e fazer contas. Jersey Girl (do tal Kevin Smith), numa sala do El Corte Inglés, sessão da meia-noite e um quarto. Ora, o que acontecerá quando os ponteiros assinalarem 1:30? Certo! O segundo plot point que envia o filme numa nova e surpreendente direcção. Foi o que aconteceu com o filme em questão, e foi surpreendente. Por momentos pensei ver o melhor momento de cinema de sempre. Um filme de chacha que se transforma numa homenagem ao César Monteiro. O ecrã fica negro, e assim se mantém. Que coragem! Pensei eu. Um realizador que mantém um filme desinteressante até chegar ao segundo plot point para então colocar o ecrã a negro e sem som. Que manifesto contra o cinema de pipoca!
Foi então que entrou uma senhora fardada dizendo que havia um problema com a máquina de projecção e com uns convites para uma sessão à escolha.

Portanto há sempre uma primeira vez para tudo, e esta foi uma delas. A minha dúvida é se foi sorte ou azar. Valerá a pena ver o resto do filme, ou deixar assim os últimos 20 minutos na eterna escuridão? A verdade é que nunca gostei de coitos interrompidos, e também nunca vi uma sessão a começar à 1:30 da manhã. Talvez experimente. Há sempre uma primeira vez. Só é pena já saber de antemão que qualquer orgasmo, por mais pequeno que seja, será impossível. O coito, retomado depois de interrompido, ainda pode ter salvação. Salvo se a girl for realmente horrososa ou de Jersey. Veremos. Inevitavelmente.